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sexta-feira

"El Laberinto del Fauno": a idade da inocência


Ano: 2006
Realização: Guillermo Del Toro
Argumento: Guillermo Del Toro
Fotografia: Guillermo Navarro
Montagem: Bernat Vilaplana
Música: Javier Navarrete
Elenco: Ivana Baquero, Sergi López, Maribel Verdú, Ariadna Gil e Doug Jones


Guillermo Del Toro é neste momento um dos realizadores favoritos da comunidade geek, se calhar até à frente do emblemático Quentin Tarantino, por representar a síntese perfeita entre o cinema de género, a atitude de fanboy e as outras artes preferidas dos geeks (comic-book, manga, literatura de género, animação, etc.). Nesse aspecto, os seus filmes mais conhecidos que são “Blade II” e “Hellboy”, dois monumentos bombásticos da subcultura, entronizaram Del Toro como um dos mais queridos cineastas no coração dos fãs de cinema de género mas também como um realizador perfeitamente descartável para a crítica pseudo-intelectual.

Daí que a recepção em Portugal ao seu último filme, “O Labirinto do Fauno”, tenha sido a vergonha à qual se assistiu nos jornais. Torna-se portanto vital deixar claro aos olhos do grande público que Guillermo Del Toro é tudo menos um yesman ao serviço dos blockbusters de Hollywood, bem pelo contrário, trata-se de um autor no verdadeiro sentido da palavra, com uma erudição e uma sensibilidade emocional fora do comum, que utiliza o género fantástico para explorar temáticas profundas e essenciais. E este aguardadíssimo “O Labirinto do Fauno” é nada menos do que o expoente máximo de uma filmografia até aqui exemplar em todos os aspectos.


Espanha, 1944. Em pleno final da Segunda Guerra Mundial, as tropas franquistas dominam o país e estão empenhadas em aniquilar de vez os últimos sobressaltos da resistência republicana, os rebeldes isolados escondendo-se pelas florestas. Ofelia (Ivana Baquero) é uma criança órfã de pai que acompanha a sua mãe Carmen (Ariadna Gil), doente por causa da sua gravidez, de encontro com o Capitão Vidal (Sergi López), o seu novo padrasto, oficial franquista brutal e misógino. Uma vez chegada à sua nova casa, Ofelia descobre um misterioso labirinto à entrada da floresta, onde vai conhecer o fauno Pan (Doug Jones), curiosa criatura mistura de animal, homem e árvore. Pan reconhece de imediato em Ofelia a Princesa Moana, soberana de um reino feérico, desaparecida desde tempos imemoriais. Enquanto a saúde da sua mãe piora de dia para dia e o seu padrasto se revela cada vez mais incontrolável e violento, Ofelia deverá cumprir três provas extremamente perigosas para assegurar o seu regresso definitivo ao trono.

Grande Prémio do último Fantasporto e galardoado com uma série impressionante de prémios internacionais (standingovation de 22 minutos em Cannes apesar de não ter lá recebido nenhum prémio!), faltam de facto as palavras para descrever a experiência sensorial e emocional que proporciona o novo filme de Guillermo Del Toro.

“El Espinazo del Diablo” Acto 2

“O Labirinto do Fauno” insere-se na lógica do realizador mexicano em alternar superproduções americanas e filmes intimistas geralmente na sua língua natal, o espanhol, sem nunca abdicar de uma coerência cinematográfica evidente, Del Toro conseguindo sempre desenvolver uma inegável continuidade visual e temática.

Neste caso preciso, “O Labirinto do Fauno” apresenta-se como o filme gémeo de uma das suas melhores obras, “El Espinazo del Diablo” de 2001 (estreado no anonimato mais completo em finais de 2002 em Portugal com o título “Nas Costas do Diabo”), fabulosa ghost story em plena Guerra Civil espanhola, onde o mundo inocente de crianças órfãs se confrontava violentamente com a crueldade do mundo adulto através de uma das figuras incontornáveis do cinema fantástico, o fantasma. São portanto muitos os pontos de contacto entre esses dois filmes: figura central da criança inocente, convivência de dois universos antinómicos (o sobrenatural e a realidade), o contexto histórico violento, o Mal absoluto concentrado no ser humano através da caracterização de uma das personagens principais.


Dessa forma, Del Toro procura aqui continuar a exploração de todos os seus temas de predilecção, não só presentes em “El Espinazo del Diablo”, mas que atravessam literalmente toda a sua filmografia. Reencontramos assim as alusões constantes à noção de tempo (da eternidade do reino da Princesa Moana passando pelo relógio partido de Vidal, objecto que define a personagem), a presença habitual dos insectos e a sua deificação (a transformação dos insectos em fadas e o seu papel de guia de passagem entre os universos paralelos), a descoberta de um universo paralelo àquele que conhecemos (geralmente subterrâneo e recôndito, o Labirinto do título), a perda de inocência frente ao pior Mal existente - o fascismo (Ofelia versus Vidal), o poder de escolha e o sacrifício de si próprio, a necessidade da desobediência e do livre arbítrio, as noções de medo e de aceitação da morte, etc. É um verdadeiro rol de temas fortes que são abordados por Del Toro de forma subtil mas também frontal e sem concessões, não poupando nem a sua personagem principal nem o espectador dos horrores que o ser humano é capaz de cometer.

Mas onde o cineasta (também argumentista e produtor) marca mais uma vez a diferença e evita inteligentemente repetir o que já fez nos seus trabalhos anteriores, é sobretudo graças ao facto de ter escolhido enveredar para o conto de fadas, género universal particularmente propício aos vários níveis de leitura e ao desenvolvimento de uma iconografia visualmente forte capaz de imergir totalmente o espectador na história contada e de transmitir alegorias evocativas de forma simples e poderosa. “O Labirinto do Fauno” revela-se assim um sucesso total para Guillermo Del Toro, uma obra-prima frágil e hipnótica que apela tanto ao nosso intelecto como aos nossos sentidos.

Fairy tale versus dark fantasy

De facto, o realizador levou as suas experimentações para um novo patamar de excelência ao reapropriar-se da essência do conto de fadas mais genuíno, recheando-o das suas obsessões negras e viscerais onde a violência mais perturbadora da realidade se confunde com a magia dos sonhos e da imaginação.

Resultado, tudo o que já vimos no cinema que se possa comparar com o novo filme de Del Toro, nomeadamente o recente “A Senhora da Água” de M. Night Shyamalan, os clássicos da Fantasia com uma estética forte como o “Legend” de Ridley Scott ou “A Companhia dos Lobos” de Neil Jordan, ou ainda o cinema de Tim Burton geralmente considerado como o que se faz de melhor no género, é literalmente ultrapassado pela abordagem radical do cineasta cuja fé no género que ilustra, recusando suavizar o negrume da realidade e mergulhando sem entraves no fantástico, permite ao seu filme inscrever-se como a primeira obra cinematográfica a fazer totalmente jus a todos os contos incontornáveis da literatura que nutriram desde sempre a 7ª Arte.


Nesse aspecto, aparece lógico que as referências visuais e narrativas de Guillermo Del Toro não venham do cinema. É já conhecida a erudição fora do comum do cineasta mexicano que passa o seu tempo a transcrever ideias e a desenhar conceitos num caderno que o acompanha para todo o lado. As influências de Del Toro têm portanto origem na literatura e sobretudo na pintura. O ponto de partida para “O Labirinto do Fauno” foi então o livro “The Great God Pan” de Arthur Machen, autor essencial da literatura fantástica do final do século XIX que recuperou o Deus da Natureza da mitologia grega para explorar através dessa figura ambígua o poder da natureza e do paganismo numa história de terror e de sexo que fez escândalo na altura. No entanto, Del Toro cedo optou por uma abordagem mais existencialista e romântica do que aquela de Machen, como já o veremos numa terceira parte.

Visualmente, o realizador convoca os seus artistas preferidos, nomeadamente o ilustrador inglês Arhur Rackham, conhecido pelos seus trabalhos picturais em várias edições literárias de contos célebres, e os dois pintores simbolistas que são o alemão Carlos Schwabe e o suíço Arnold Böcklin, o primeiro pelo seu trabalho sobre a mitologia e o segundo pelas suas paisagens atormentadas. Por último, não podemos esquecer Francisco Goya, famoso pintor espanhol, cujo assombroso quadro “Saturno devorando a su hijo” foi uma influência directa na criação do maléfico Pale Man e do seu antro aterrador.

Assim, as imagens compostas por Del Toro e o seu compatriota e habitual director de fotografia, o genial Guillermo Navarro, são autênticas telas de mestre em movimento. Desde um início em plano-sequência que nos imerge de imediato no universo paralelo do filme, passando pela cena da árvore com esse plano inesquecível de Ofelia na penumbra a penetrar um antro semeado de pontinhos de luz, até à cena traumatizante com o Pale Man digna dos piores pesadelos, “O Labirinto do Fauno” é um festim para os olhos, um filme pensado ao pormenor, matemático na disposição das cenas e na escolha dos planos que as compõem. Só nos filmes de animação de Hayao Miyazaki reencontramos um tal nível de excelência no trabalho das perspectivas, dos ângulos e dos movimentos de câmara, realizador do qual Guillermo Del Toro é um reconhecido fã. O mexicano concretiza portanto num filme live o que o mestre nipónico da animação atinge a cada um dos seus filmes, a criação de um filme-universo de uma coerência e uma credibilidade imparáveis, levando o espectador ao mais alto nível de envolvimento.

O choque visual deve-se também ao trabalho alucinante sobre a iluminação do quadro e à caracterização perfeita do que compõe esse ambiente sobrenatural. O jogo de luz pensado por Del Toro e Navarro é portanto fulcral no sucesso do filme, com uma alternância constante entre a frieza do quotidiano militar do campo rural ocupado pelos franquistas e o calor falsamente tranquilizador do universo que só Ofelia pode ver. De um lado, temos então as cores pálidas dos uniformes e o tempo chuvoso que alaga as florestas e do outro, são as cores quentes da natureza e do sol onde a ambivalência do fauno Pan e o festim apetitoso mas letal no antro do Pale Man demonstram que mundo real e mundo imaginário estão irremediavelmente ligados. De facto, este jogo constante de luzes e a montagem paralela escolhida por Guillermo Del Toro, mostrando frequentemente em simultâneo as acções de Ofelia e das tropas lideradas pelo Capitão Vidal, são a tradução directa das simbologias que representam o coração do filme, essas mesmos que fazem de “O Labirinto do Fauno” uma obra de uma riqueza e de uma força com poucos equivalentes.


A simbologia reflexiva

Da coabitação da realidade da Espanha fascista e do mundo paralelo (imaginário ou não, Del Toro tendo a inteligência de nunca dar uma resposta) descoberto por Ofelia nasce portanto uma oposição que marca toda a estrutura narrativa do filme. O realizador desenvolve então uma correspondência evidente entre o percurso de Ofelia (fabulosa Ivana Baquero) e o destino do Capitão Vidal (alucinante Sergi López), figura do Mal absoluto. Numa primeira fase, o universo subterrâneo do qual Ofelia seria a Princesa Moana aparece como uma escapatória aos terríveis acontecimentos que balizam a sua vida (os problemas de saúde da sua mãe, um padrasto violento e tirânico, uma guerra civil que mata e divide os seres humanos). Todavia, cedo essa descoberta assume o papel necessário da perda de inocência para Ofelia, a única forma viável para ela conseguir enfrentar todos os horrores que a rodeiam.

Logo, as três provas impostas pelo fauno Pan vão revelar-se o reflexo das acções de Vidal, permitindo a Ofelia afirmar-se e tentar impedir trágicos acontecimentos. A primeira prova vê Ofelia obrigada a entrar numa árvore que está a morrer, parasitada por um sapo que lhe está a sugar a vida, enquanto as tropas de Vidal penetram na floresta em perseguição às facções rebeldes. Representando o fascismo que gangrena a natureza humana mas também o seu irmão a nascer que está a matar a sua mãe, Ofelia destrói o sapo para recuperar uma chave.

A segunda prova será ainda mais perigosa, diz-lhe o fauno. Penetrando no antro do Pale Man, Ofelia deverá introduzir a chave numa das três fechaduras para recuperar um punhal. Figura esquelética em deliquescência com os olhos nas mãos (agir antes de ver e pensar), o Pale Man é uma representação do próprio Vidal ou ainda do fascismo que ele serve. Num antro cheio de pinturas murais representando o Pale Man a comer literalmente crianças e afins, Ofelia não resiste a tentação de uma mesa recheada de comida apetitosa (Vidal decidiu racionar a comida para obrigar os resistentes a render-se, açambarcando todos os víveres) ou quando as doutrinas fascistas são sedutores ao ponto de corromper tudo e todos. Escapando por um triz ao Pale Man (um Vidal que põe em perigo a sua progenitura), o fauno reprimenda com veemência Ofelia por não ter obedecido mas é essa desobediência que lhe permitiu abrir a fechadura certa, prova que não se deve seguir cegamente as ideias preconcebidas e os tiranos sob pena de perder definitivamente a sua identidade.


Será então numa derradeira prova, onde o confronto com Vidal é inevitável, que Ofelia vai concluir o seu percurso doloroso para entrar na idade adulta e assim afirmar-se como a perfeita antítese do seu padrasto maléfico. De facto, Del Toro procura marcar constantemente e em crescendo as diferenças entre um e outro, ao longo do filme. Se Ofelia é doce e cheia de compaixão, atraída inexoravelmente pelo lado mágico e imaginário da vida, Vidal é um autêntico monstro de cara humana (o ser humano de aparência perfeita mais monstruoso do que o monstro disforme no exterior, como sempre gostou Del Toro) que revela progressivamente toda a sua crueldade e a sua loucura. Mistura de Kroenen e do Jacinto de “El Espinazo del Diablo”, obcecado pelo tempo e pela hora da sua morte (o relógio quebrado que sempre o acompanha pertenceu ao seu pai, adivinhando-se a terrível infância que deve ter tido), todo ele possuído pelo ódio (até dele próprio, ver a cena onde finge cortar o seu próprio pescoço no espelho quando se está a barbear) e suicidário nos confrontos armados, Vidal deixa à menor ocasião explodir a sua violência como quando mata um camponês inocente com golpes sucessivos de uma garrafa na cara ou quando tortura um rebelde para o fazer falar. Uma violência gráfica que Del Toro se recusa a dissimular, deixando exprimir-se toda a brutalidade da personagem com cenas gore surpreendentes e profundamente perturbadoras.

Nessa linha de raciocínio de simbologia reflexiva, “O Labirinto do Fauno” só poderia acabar na tragédia, sendo que Guillermo Del Toro leva até ao limite o seu conceito de conta de fadas negro e realista, onde a experiência da vida se faz na dor e no sofrimento, sem que as crianças estejam imunes a pagar o preço mais alto. A perda de inocência de Ofelia é portanto total mas não a perda da sua identidade íntima, recusando na última prova sacrificar a vida de outro ser humano e aceitando assim a vida no sentido pleno da palavra, com o seu lado imprevisível e funesto. Nuns momentos finais de uma melancolia avassaladora, onde a profunda tristeza se funde com uma representação belíssima do maravilhoso, síntese perfeita da nota de intenção do filme, “O Labirinto do Fauno” acaba assim por nos derrubar, deixando-nos de olhos vidrados cheios de lágrimas virados para o ecrã e hipnotizados pelo score sublime de Javier Navarrete, conscientes de termos penetrado no universo íntimo de um realizador único que nos abriu as portas da sua visão sem concessões da condição humana e da sua fé na vida e o seu lado imaginário, para aqueles que o queiram ver.

“O Labirinto do Fauno” é simplesmente uma obra-prima absoluta cuja riqueza visual e temática resiste à análise racional, sendo que é impossível desvendar toda a sua riqueza intrínseca. Guillermo Del Toro é um dos grandes cineastas dos nossos tempos, um extraordinário contador de histórias e um autor de uma sensibilidade e uma inteligência impressionantes. Entrem livres de espírito neste “Labirinto do Fauno”, a viagem visceral e poderosa que proporciona é de todo irrecusável. 

18/03/2007

2 comentários:

IdoMind disse...

Venho aqui antes de mais congratular-te pela ressurreição do Fanaticine.
Depois congratular-te pelo filme que escolheste.
E por fim congratular-te pela critica brilhante!

Reitero o prémio " Eu sou uma enciclopédia".

Vou enviar o link para alguns pseudo-criticos de cinema. A ver se aprendem alguma coisa.

Estou muito vaidosa por ti :))
beijocas

Mr. Hand disse...

Muito obrigado pelo teu comentário, não há melhor incentivo.

Este renascer é por enquanto sobretudo para reactivar o passado, até porque me orgulho do trabalho que fizemos na altura e acho que ele tem de ser devidamente divulgado. Nestes tempos de facebook e companhia, acho que vamos chegar a mais pessoas que chegamos anteriormente. É mais uma chance a aproveitar.

Depois, espero ter em condições de no futuro voltar a fazer críticas como deve ser, ou seja, exigentes com quem as faz e com quem as lê. Aliás, o cinema de género precisa mais do que nunca de ser defendido com unhas e dentes, portanto gostava de poder continuar a dar o meu modesto contributo para isso, cá em Portugal faz muito falta no meu entender, gangrenados que estamos pelos pseudo-intelectualóides, precisamente.

Veremos portanto o que o futuro reserva ao FanatiCine versão blog, pelo menos já se provou o FanatiCine é imortal!