Realização: Michael Mann
Argumento: Michael Mann
Fotografia: Dion Beebe
Fotografia: Dion Beebe
Montagem: William Goldenberg e Paul Rubell
Música: John Murphy
Elenco: Colin Farrell, Jamie Foxx, Gong Li, Naomie Harris, John Ortiz, Elizabeth Rodriguez, Justin Theroux, Barry Shabaka Henley e Luis Tosar
A série televisiva “Miami Vice” foi sem dúvida um marco do pequeno ecrã nos anos 80. Ao saber que o produtor executivo da altura, o agora brilhante realizador Michael Mann, se preparava para a adaptar ao grande ecrã, muitos foram aqueles que não acreditaram na viabilidade artística de trazer de volta uma série considerada hoje em dia tão básica e kitsch. É esquecer um pouco facilmente que a série “Miami Vice” revolucionou a produção da altura, trazendo ao pequeno ecrã uma gramática estética e um extremismo de mise en scène nunca vistos antes. Graficamente violento, fortemente ancorado no género hard boiled e supra sumo visual dos anos 80, “Miami Vice” não era de facto uma série como as outras. Aliás, essa vontade de explodir os limites estéticos da época e os standards do género, anunciada pela série, reencontrou-se no cinema com os dois expoentes máximos do policial dos anos 80 que são “To Live and Die in L.A.” de William Friedkin em 1985 e “Manhunter” do próprio Michael Mann um ano mais tarde, fazendo com que o género só voltasse a emergir de forma inovadora na década de 90.
Os detectives Sonny Crocket (Colin Farrell) e Rico Tubs (Jamie Foxx) são dois dos agentes melhor cotados da polícia de Miami, especializados em operações de infiltração junto dos grandes barões da droga. Quando uma operação de uma outra divisão da polícia corre mal com a morte de dois agentes e de um informador habitual de Sonny e Rico, a dupla é chamada para encabeçar uma nova operação para apanhar os responsáveis. Fazendo-se passar por transportadores de droga, Sonny e Rico vão penetrar a organização de Arcángel Jesús Montoya (Luis Tosar), um impiedoso e poderosíssimo narcotraficante. Mas o caso complica-se quando Sonny se envolve com o braço direito e companheira de Arcángel, Isabella (Gong Li), e quando José Yero (John Ortiz), chefe da segurança de Arcángel, começa a duvidar da dupla, atacando-se directamente as pessoas próximas de Rico.
Hollywood Blockbuster, really?
“Miami Vice” é um blockbuster único. Com um argumento à partida básico e que utiliza todos os clichés inerentes ao género, Michael Mann levou as suas experimentações visuais ao limite e transformou uma superprodução de Hollywood em puro filme de autor, misturando a credibilidade de uma reportagem de guerra ao formalismo sensorial altamente implicativo que só o domínio total da arte cinematográfica permite. Potencialmente um “Bad Boys 3” nas mãos de qualquer clone de Michael Bay, “Miami Vice” resulta assim em duas horas e um quarto de completa imersão do espectador no mundo destes polícias sem identidade, divididos entre dois universos diametralmente opostos, no mundo da noite, do tráfico internacional de droga e da violência urbana assustadora de realismo.
Não foi fácil para o realizador conseguir levar a cabo esse seu projecto de fazer um filme comercial tão longe dos standards habituais dos blockbusters americanos. A produção de “Miami Vice” foi um verdadeiro pesadelo para um Michael Mann que já experienciou rodagens caóticas e projectos malditos por causa da sua visão precisa e intransigente do que deve ser o seu cinema (ex: “The Keep” em 1983). Empenhado em fazer um filme exigente e sem compromissos, Mann enfrentou uma série de graves problemas no set do seu último filme. Três furacões atrasaram consideravelmente a rodagem (um deles o Katrina), Colin Farrell teve uma overdose e foi hospitalizado, mais de 120 membros da equipa técnica despediram-se em bloco protestando contra a carga horária de trabalho desumana derivada das exigências obsessivas e perfeccionistas do realizador, Jamie Foxx armou-se em estrela e tornou-se literalmente insuportável.
Consequência: de um budget oficial de 135 milhões de dólares (lembramos que "Colateral" custou uns míseros 65 milhões), fala-se que o orçamento subiu para uns assustadores 200 milhões, o que inquietou de imediato os executivos da Universal. Para complicar ainda mais, as primeiras projecções-testes, onde três montagens do filme são apresentadas com uma de cerca de três horas de duração, foram catastróficas, obrigando Mann a voltar à sala de montagem.
Consequência: de um budget oficial de 135 milhões de dólares (lembramos que "Colateral" custou uns míseros 65 milhões), fala-se que o orçamento subiu para uns assustadores 200 milhões, o que inquietou de imediato os executivos da Universal. Para complicar ainda mais, as primeiras projecções-testes, onde três montagens do filme são apresentadas com uma de cerca de três horas de duração, foram catastróficas, obrigando Mann a voltar à sala de montagem.
Uma abstracção imersiva
Felizmente para nós, a visão de Michael Mann conseguiu chegar aos ecrãs de cinema praticamente intacta e o cinéfilo sairá simplesmente de boca aberta após ter assistido a mais uma lição de cinema de um dos melhores formalistas da história do cinema. “Miami Vice” consegue o feito espectacular de nos agarrar da primeira à última imagem sem nunca deixar cair a tensão e a implicação emocional. Sem genérico e sem qualquer tipo de introdução, somos de imediato transportados para o ambiente frenético e confuso de uma discoteca e, com um punhado de planos como só Mann sabe fazer, damos por nós a sentir como se estivéssemos lá, no meio da pista de dança e ao lado do Sonny e do Rico. Essa sensação física de penetrar a história, como se estivéssemos embriagados pelas imagens, vai revelar-se a fundação principal do projecto de mise en scène de Michael Mann. É um pouco como se a nouvelle vague se fundisse com o filme de género, recorrendo à tecnologia mais actual possível, ou seja, o digital.
Continuando as suas experimentações iniciadas com o thriller "Colateral", Mann levou ao auge a utilização da câmara digital Thomson Viper, privilegiando aqui umas filmagens ainda mais naturalistas com o máximo de planos de câmara ao ombro ou com a steadycam, transformando a audiência em parte integrante dos acontecimentos. Não somos aqui meros espectadores, mas sim íntimos observadores e acompanhantes do que vivem as personagens. O segredo de Michael Mann reside, portanto, nessa faculdade suprema em fazer do nosso olhar a visão da câmara. Não nos é dado a ver, é nos dado a viver e o cinema de Michael Mann representa então a quintessência da 7ª Arte, aquilo que faz dela uma arte única e inalcançável.
Por mais banal que nos possa assim parecer esta história, é impossível “Miami Vice” deixar-nos indiferente e todos os clichés são credibilizados com uma fé inabalável do realizador naquilo que está a contar. As personagens são desenvolvidas o suficiente (Colin Farrell e Jamie Foxx são convincentes) e as situações não são explicitadas em demasia, Mann contando sempre com a inteligência do espectador. A personagem que se revela a mais surpreendente é sem dúvida Isabella, interpretada pela sublime e muito talentosa actriz chinesa Gong Li. Personagem trágica e condenada, Isabella é um belo retrato de mulher que Gong Li e Michael Mann caracterizam de forma subtil e inteligente. Aliás, todas as personagens e as suas interacções são caracterizadas dessa forma, Mann preferindo utilizar a sua câmara para dar vida aos seus actores do que capitalizar em muitos diálogos que muitas vezes aniquilam o ritmo narrativo.
Assim, todas as personagens, até as mais secundárias, marcam uma presença forte graças a vários planos que denotam mais uma vez que não há nada mais significativo do que a história ser contada pela câmara. A cena de dança entre Sonny e Isabella, os planos sobre os olhares ou os planos fixos sobre certas expressões faciais (ex: a cara de José Yero na discoteca, plano anunciador de um acontecimento trágico), as cenas reflexivas de Rico e Trudy no duche e mais tarde Sonny e Isabella numa cena similar, as magníficas cenas de amor, etc.. Com os poucos diálogos do filme, a omnipresença da noite e a multiplicidade dos locais (Miami, Colômbia, Cuba, Haiti, etc.), essa escolha narrativa de Michael Mann faz do seu “Miami Vice” uma abstracção altamente visceral, onde somos intimamente transportados para o interior de seres humanos tentando sobreviver e recusando perder as suas identidades.
Felizmente para nós, a visão de Michael Mann conseguiu chegar aos ecrãs de cinema praticamente intacta e o cinéfilo sairá simplesmente de boca aberta após ter assistido a mais uma lição de cinema de um dos melhores formalistas da história do cinema. “Miami Vice” consegue o feito espectacular de nos agarrar da primeira à última imagem sem nunca deixar cair a tensão e a implicação emocional. Sem genérico e sem qualquer tipo de introdução, somos de imediato transportados para o ambiente frenético e confuso de uma discoteca e, com um punhado de planos como só Mann sabe fazer, damos por nós a sentir como se estivéssemos lá, no meio da pista de dança e ao lado do Sonny e do Rico. Essa sensação física de penetrar a história, como se estivéssemos embriagados pelas imagens, vai revelar-se a fundação principal do projecto de mise en scène de Michael Mann. É um pouco como se a nouvelle vague se fundisse com o filme de género, recorrendo à tecnologia mais actual possível, ou seja, o digital.
Continuando as suas experimentações iniciadas com o thriller "Colateral", Mann levou ao auge a utilização da câmara digital Thomson Viper, privilegiando aqui umas filmagens ainda mais naturalistas com o máximo de planos de câmara ao ombro ou com a steadycam, transformando a audiência em parte integrante dos acontecimentos. Não somos aqui meros espectadores, mas sim íntimos observadores e acompanhantes do que vivem as personagens. O segredo de Michael Mann reside, portanto, nessa faculdade suprema em fazer do nosso olhar a visão da câmara. Não nos é dado a ver, é nos dado a viver e o cinema de Michael Mann representa então a quintessência da 7ª Arte, aquilo que faz dela uma arte única e inalcançável.
Por mais banal que nos possa assim parecer esta história, é impossível “Miami Vice” deixar-nos indiferente e todos os clichés são credibilizados com uma fé inabalável do realizador naquilo que está a contar. As personagens são desenvolvidas o suficiente (Colin Farrell e Jamie Foxx são convincentes) e as situações não são explicitadas em demasia, Mann contando sempre com a inteligência do espectador. A personagem que se revela a mais surpreendente é sem dúvida Isabella, interpretada pela sublime e muito talentosa actriz chinesa Gong Li. Personagem trágica e condenada, Isabella é um belo retrato de mulher que Gong Li e Michael Mann caracterizam de forma subtil e inteligente. Aliás, todas as personagens e as suas interacções são caracterizadas dessa forma, Mann preferindo utilizar a sua câmara para dar vida aos seus actores do que capitalizar em muitos diálogos que muitas vezes aniquilam o ritmo narrativo.
Assim, todas as personagens, até as mais secundárias, marcam uma presença forte graças a vários planos que denotam mais uma vez que não há nada mais significativo do que a história ser contada pela câmara. A cena de dança entre Sonny e Isabella, os planos sobre os olhares ou os planos fixos sobre certas expressões faciais (ex: a cara de José Yero na discoteca, plano anunciador de um acontecimento trágico), as cenas reflexivas de Rico e Trudy no duche e mais tarde Sonny e Isabella numa cena similar, as magníficas cenas de amor, etc.. Com os poucos diálogos do filme, a omnipresença da noite e a multiplicidade dos locais (Miami, Colômbia, Cuba, Haiti, etc.), essa escolha narrativa de Michael Mann faz do seu “Miami Vice” uma abstracção altamente visceral, onde somos intimamente transportados para o interior de seres humanos tentando sobreviver e recusando perder as suas identidades.
O filme de acção do futuro
Filme negro e realista, “Miami Vice” também o é nas suas cenas de acção e na representação que faz da violência. Três cenas antológicas delimitam a metragem, uma no princípio e duas mais para o final do filme. A primeira, um negócio de droga que corre mal e que vê dois polícias infiltrados literalmente chacinados dentro de um carro, oficia como a demonstração inequívoca que a vida destes homens não tem nada de glamour, bem pelo contrário. Brilhantemente filmada do ponto de vista do banco de trás da viatura, eis uma cena – quase gore mas sem nenhum riso à mistura – que nos faz engolir em seco e nos faz entrar da melhor maneira num mundo sério e perigoso. As outras duas cenas também privilegiam a credibilidade e ficamos com a forte convicção que, quando estas situações de crise ocorrem na realidade, é mesmo assim que se passa. Com um trabalho extraordinário no sound design (nunca ouvimos disparos e impactos de balas tão reais desde “Heat – Cidade sob Pressão”), essas duas cenas dão-nos volta ao estômago de tanta tensão e violência, quase que temos vontade de nos desviar das balas de tanta implicação criada pelas filmagens de Michael Mann.
Filme negro e realista, “Miami Vice” também o é nas suas cenas de acção e na representação que faz da violência. Três cenas antológicas delimitam a metragem, uma no princípio e duas mais para o final do filme. A primeira, um negócio de droga que corre mal e que vê dois polícias infiltrados literalmente chacinados dentro de um carro, oficia como a demonstração inequívoca que a vida destes homens não tem nada de glamour, bem pelo contrário. Brilhantemente filmada do ponto de vista do banco de trás da viatura, eis uma cena – quase gore mas sem nenhum riso à mistura – que nos faz engolir em seco e nos faz entrar da melhor maneira num mundo sério e perigoso. As outras duas cenas também privilegiam a credibilidade e ficamos com a forte convicção que, quando estas situações de crise ocorrem na realidade, é mesmo assim que se passa. Com um trabalho extraordinário no sound design (nunca ouvimos disparos e impactos de balas tão reais desde “Heat – Cidade sob Pressão”), essas duas cenas dão-nos volta ao estômago de tanta tensão e violência, quase que temos vontade de nos desviar das balas de tanta implicação criada pelas filmagens de Michael Mann.
Apesar de ser um pouco menos profundo do que os já citados “Heat – Cidade sob Pressão” ou "Colateral", “Miami Vice” é no entanto um trip sensorial sem equivalentes no cinema americano actual, ainda mais quando se tem em conta que se trata de um suposto blockbuster. O único a poder rivalizar é John McTiernan, infelizmente impedido de rodar filmes em Hollywood neste momento por causa de flops sucessivos e problemas crónicos de produção. Fora dos Estados Unidos, só o chinês Tsui Hark se pode equiparar à mestria e ao experimentalismo de Michael Mann, como demonstra a sua obra-prima "The Blade" com as suas veleidades artísticas similares.
Portanto, quem está à espera de um blockbuster básico como Hollywood produz em cadeia, pode tirar isso da ideia, “Miami Vice” é um filme de autor que leva até ao limite a gramática cinematográfica moderna como a conhecemos para a redefinir e brindar-nos com uma autêntica bomba fílmica fascinante pensada para o espectador mais exigente. Só de pensar que este senhor que é Michael Mann tem capacidade para ir ainda mais longe, é febril e impacientemente que se aguarda o próximo filme de um dos melhores cineastas americanos da história do cinema.
06/08/2006
0 comentários:
Enviar um comentário