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domingo

"A History of Violence": radiografia de uma implosão familiar


Ano: 2005
Realização: David Cronenberg
Argumento: John Olson, adaptado da graphic novel de John Wagner e Vince Locke 
Fotografia: Peter Suschitzky
Montagem: Ronald Sanders
Música: Howard Shore
Elenco: Viggo Mortensen, Maria Bello, Ed Harris, Ashton Holmes, Stephen McHattie, Greg Bryk e William Hurt
IMDB


O mestre da new flesh está de volta! David Cronenberg, o exímio realizador de obras que traumatizaram os cinéfilos do mundo inteiro, regressa com “Uma História de Violência” que se apresentava como um filme decisivo na carreira do cineasta canadiano. Decisivo porque desde o seu “Crash” em 1996 que Cronenberg dividiu os seus fãs, transformando-se para muitos em cineasta mais preocupado com a aceitação que lhe era recusada desde sempre pela crítica dita intelectual do que com a sua visão iconoclasta do cinema.

O regresso de um visionário

De facto, David Cronenberg é um visionário desde as suas primeiras obras e fez sem dúvida filmes sem equivalentes no panorama cinematográfico. Engraçado foi ver que só ficou aceite como autor e celebrado pela generalidade da crítica, quando se deixou de experimentações visuais gore e viscerais para depurar o seu cinema e fazer filmes mais conformes à ideia que se tem do cinema de autor. Não será preciso lembrar que, antes de ser venerado como o é agora (o ciclo da cinemateca que terminou recentemente sobre a sua obra é exemplo disso), Cronenberg era literalmente chacinado por uma crítica conservadora e bem pensante, que via nele um pseudo-cineasta doentio e irresponsável.

Mesmo se a controversa em torno de Cronenberg continua a existir (não poderia ser de outra forma frente aos seus filmes), como aconteceu em Cannes ainda o ano passado com este “História de Violência” que alguns não hesitaram em classificar de verdadeira “merda”, a verdade é que os que outrora abominavam o cineasta e tinham orgulho em mostrá-lo, são hoje os mesmos vira-casacas que a qualquer filme de Cronenberg, independentemente da sua qualidade, gritam “obra-prima”, enquanto a sua carreira desde “Crash” parecia ir de mal a pior.

Não vamos aqui entrar em pormenores no retrato dos seus filmes anteriores que são as desilusões “eXistenZ” e “Spider” mas bastará dizer que Cronenberg parecia a sombra dele próprio enquanto a crítica parecia andar ao contrário da qualidade das suas obras (ex: “Videodrome”, obra-prima absoluta, objecto de uma chacina sem precedentes na altura, claro que agora todos voltaram atrás com uma curiosa epidemia de amnésia, em comparação com o seu gémeo falhado “eXistenZ”, imediatamente catalogado como uma obra indispensável). David Cronenberg encontrava-se portanto numa viragem importante da sua carreira, iria ele continuar a afundar-se em filmes falsamente inteligentes pensados somente para uma crítica com falta de filmes que possa perceber (ex: “Spider”) ou regressar finalmente ao seu estudo dos males interiores do ser humano através do confronto entre o corpo e a mente?


O consenso da crítica à volta desta “História de Violência” podia legitimamente inquietar o cinéfilo desesperado por ver um dos seus cineastas preferidos regressar às obras-primas, com as quais nos brindava no passado com uma facilidade desconcertante (“Videodrome”, “The Dead Zone”, “A Mosca”, “Dead Ringers”, “O Festin Nu”, impressionante!), mas uma vez descoberto o seu novo filme, é com uma rara excitação que constatamos que Cronenberg fez simplesmente o seu melhor filme desde “O Festim Nu”.

Redefinição visceral do Thriller

Como não podia deixar de ser, Cronenberg consegue o seu melhor filme dos últimos quinze anos, voltando ao cinema de género e respondendo a uma encomenda da New Line. Relembrando a fase onde realizou “The Dead Zone” e “A Mosca”, respectivamente uma adaptação de Stephen King produzida por Dino De Laurentiis e um remake produzido pela Fox, duas das suas obras máximas, Cronenberg reencontra paradoxalmente toda a força do seu cinema, mascarando-se de classicismo e dinamitando do interior o género formatado do thriller à americana.

Falsa adaptação de uma BD hard boiled de John Wagner (pai do incontornável “Judge Dredd”) e Vince Locke, Cronenberg afasta-se do material original, colocando subtilmente todas as suas obsessões escondidas no centro do filme. Esta história, de um pacato dono de café em pleno Indiana rural, aparentemente com uma vida perfeita com a sua mulher e os seus dois filhos, que vê a sua rotina perturbada quando mata em legítima defesa dois assassinos que irromperam no seu estabelecimento, tornando-se um herói local e atraindo assim a atenção de mafiosos convencidos que ele é outra pessoa, tinha tudo para ser mais um thriller banal e formatado à boa maneira de Hollywood, mas era sem contar com um Cronenberg finalmente de regresso à sua forma olímpica e empenhado em contrariar todos os códigos intrínsecos ao género para construir uma autêntica bomba-relógio à qual o tradicional American Dream não sobreviverá.

Continuando a explorar o seu estilo depurado que iniciou com “Dead Ringers”, aqui em perfeita adequação com a veia realista da história, o cineasta vai jogar desde o princípio e ao longo do filme com as falsas aparências, falso thriller, falsa realidade, falsas personagens, falso sonho americano, falsa tranquilidade, prelúdio a um desencadear de violência e de ambiguidade. As chaves do filme são dadas nas duas cenas iniciais quando Cronenberg começa o seu filme com um plano-sequência seguindo os dois assassinos que mais tarde mudarão a vida de Tom Stall (Viggo “Aragorn” Mortensen, mais uma vez imperial). Escolha técnica perfeita para fazer crescer a sensação no espectador que alguma coisa de terrível se esconde fora do quadro, essa cena lenta e pousada acaba de forma traumatizante, filmada com uma naturalidade que nos diz que a violência faz parte das nossas vidas à semelhança dos actos de comer, dormir ou respirar.

O final desta cena é posto imediatamente em correspondência com a vida da família que vamos acompanhar ao longo da história ao assimilá-la a um pesadelo da filha de Tom, que todos tentam acalmar num excesso claro de bons sentimentos e ingenuidade. Ao mesmo tempo anunciadora do mal prestes a acontecer e reveladora da nossa ambiguidade como ser humano (“os monstros não existem” diz Tom à sua filha), esta cena delimita todo o campo de experimentações que Cronenberg vai então pôr em marcha no estudo da desintegração total da célula familiar contaminada por esse vírus imparável que é a violência.


Uma violência contaminadora

Sim, porque mais uma vez, é de contaminação que fala esta “História de Violência”, a contaminação do nosso quotidiano por esse agente patológico que não poupa ninguém. Mas cuidado, não somos de forma nenhuma vítimas desse vírus, como o demonstra perfeitamente Cronenberg, somos o portador dessa violência que aguarda no interior do nosso corpo a ocasião de explodir em todo o seu esplendor. É aqui que o cineasta aproveita para acordar os velhos demónios da sociedade americana onde a ambivalência da violência (de um lado o fascínio e o poder que confere, do outro a destruição dos valores morais e a terrível perda de identidade que acarreta) atinge o seu auge, demolindo do interior a entidade sagrada que representa a família.

Para isso, Cronenberg bifurca calmamente do thriller para o western, género supremo na definição do que é hoje a nação chamada Estados Unidos. É natural então que Tom, após ter morto os dois criminosos numa cena de extrema violência à boa maneira gore do cineasta, seja visto como um herói pela pequena comunidade mas, o que era até aqui a descrição demasiada pacata e feliz da vida de Tom para não estarmos à espera que algo trágico acontecesse, vai ser irremediavelmente transformado pela libertação quase inconsciente do vírus pelo portador interpretado por Viggo Mortensen.

A contaminação está portanto em marcha e tudo o que Cronenberg desenvolveu na instalação da sua história, aplicando com serenidade todos os códigos que conhecemos dos filmes americanos (a cena de pequeno almoço em família, a cena de basebol e a picardia entre adolescentes na escola), vai evoluir em função da própria evolução do vírus num desvio subtil de todos esses códigos. Nesse aspecto, toda a ambiguidade das personagens, a começar por Tom, é fundamental para perceber que lutamos constantemente contra os nossos instintos, divididos que estamos entre o animal primário e o animal social, finalmente poço de todas as frustrações. Insidiosa, a violência vai então penetrar a casa dos Stall, progressivamente à medida que a dúvida se instala à volta da identidade de Tom, implacavelmente à medida que o desfigurado Fogarty (um Ed Harris perturbador) procura acordar os demónios de Tom.

O culminar desta contaminação revela-se no primeiro clímax do filme quando, num duelo altamente westerniano, Tom passa definitivamente o vírus ao seu filho, atingindo assim o ponto de não retorno, numa cena onde cada tiro gela o sangue e onde os estragos no corpo humano são aterradores. A mutação do corpo não é de facto esquecida por Cronenberg que, face a uma história abertamente não fantástica, aplica a sua habitual temática de forma subtil, basta ver como Viggo Mortensen fica alterado psicologicamente a cada “transformação” para constatar todas as consequências da violência directamente na sua expressão facial e no seu corpo. Aliás, Cronenberg continua a desenvolver o seu fascínio em filmar as cicatrizes dos corpos como ninguém, o que é bem mais eficaz do que vãos discursos (o tempo que passa a filmar a cara de Ed Harris, os golpes mortíferos muito sangrentos, as nódoas negras da mulher de Tom).


The American Dream is dead and buried!

Cronenberg regressa portanto de novo ao seu estatuto de realizador visceral, que tanto lhe fez falta nos seus últimos filmes e leva para patamares que não esperávamos uma história em todos os aspectos banal. Não é todos os dias que vimos um filme de um grande estúdio americano (New Line, produtora do “Senhor dos Anéis”) onde um pacato casal começa um 69, onde um homem considerado como um modelo da sociedade começa a partir narizes, pescoços, etc. ou onde uma família se desintegra literalmente à nossa frente de forma nua e crua. Essa desintegração atinge precisamente o seu auge numa cena de sexo no mínimo perturbadora (respondendo a outra cena de sexo do princípio do filme) onde, mais uma vez, Cronenberg mostra a evolução das suas personagens através da contaminação da violência, desejo carnal e necessidade predadora misturando-se de forma doentia mas terrivelmente real.

A conclusão desta “História de Violência” é então à imagem de todo o filme, ambígua e perturbadora. Após mais uma cena de matança desconcertante plena de humor negro, Cronenberg acaba o seu filme de forma implacável numa última deturpação das imagens icónicas do cinema americano com o regresso de Tom a uma célula familiar literalmente desfeita, em pleno jantar, apenas acompanhado pela música hipnótica do colaborador habitual Howard Shore. Ao desfigurar as suas personagens bem como o cinema americano tradicional, Cronenberg deixa-nos então sozinhos frente aos nossos demónios e às nossas contradições, verdadeiramente assustador.

Como terão percebido, “Uma História de Violência” devolve-nos um David Cronenberg em estado de graça que, após se ter perdido em terras pouco recomendáveis do cinema intelectualizante banal e previsível, regressa ao seu cinema perturbador e visceral através de uma encomenda que conseguiu transcender e “contaminar” em todos os aspectos. Cronenberg nunca é tão bom como quando se insere no cinema de género e o parasita do interior com a sua visão iconoclasta e destemida do ser humano. Este filme vai de certeza fazer muito bem ao cinema do realizador canadiano e esperemos que este regresso vital de Cronenberg para quem gosta de cinema original e inteligente seja para durar. Long live the new flesh!

25/03/2006

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