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quarta-feira

"The Proposition": dos homens e dos demónios



Ano: 2005
Realização: John Hillcoat
Argumento: Nick Cave
Fotografia: Benoît Delhomme
Montagem: Jon Gregory
Música: Nick Cave e Warren Ellis
Elenco: Guy Pearce, Ray Winstone, Emily Watson, Danny Huston, Richard Wilson, David Wenham e John Hurt
IMDB


O Western é de facto um dos géneros maiores da 7ª Arte. Desde os clássicos de John Ford ou Howard Hawks, passando pelo revisionismo desencantado de um Sam Peckinpah, até à reapropriação do género pelo cinema italiano com a visão única de Sérgio Leone e os seus seguidores, o Western fez-se o espelho da evolução do cinema ao longo dos anos, contaminando os outros géneros com os seus códigos particulares. Género altamente cinematográfico com os seus emblemáticos cowboys, cavalos, cidades fantasmas, desertos e planícies sem fim, sujidade e violência iconográficas, o Western acabou também por se fazer o eco do passado das nossas civilizações modernas, geralmente nascidas da barbaridade e do sangue.

Tecendo inúmeras correspondências e finalidades com o chambara japonês e o wu xia pian chinês, o Western, género profundamente americano, ganhou uma universalidade sem equivalentes e um poder de evocação que muitos acharam ultrapassado após os anos 70. Alguns irredutíveis dos géneros como Clint Eastwood ou Kevin Costner e, indirectamente, John Carpenter, mantiveram o género vivo e, o menos que se pode dizer, é que o fantasma bem vivace do Western nunca esteve tão presente nos ecrãs de cinema do que ultimamente. Tommy Lee Jones e o seu fabuloso “The Three Burials of Melquiades Estrada” e Ang Lee e o seu marcante “Brokeback Mountain” para as referências directas, mas também David Cronenberg e o seu thriller altamente westerniano “A History of Violence” ou ainda Alexandre Aja e o seu filme de terror icónico em pleno deserto do Novo México “The Hills Have Eyes”.


A estes excelentes exemplos que o Western pode ser um dos melhores veículos de uma história visual e emocionalmente forte, bem como um ensaio incisivo e sem concessões da natureza humana, junta-se agora “The Proposition”, Western australiano da dupla John Hillcoat/Nick Cave, o primeiro na realização e o segundo no argumento e na banda sonora.

O fantasma de Sam Peckinpah

“The Proposition” conta a história dos três irmãos Burns, criminosos perseguidos pelo Capitão Stanley (Ray Winstone) e as suas tropas, em plena Austrália do final do século XIX. Após um crime hediondo que causou o extermínio de uma família inteira, Charlie (Guy Pearce) e o seu irmão mais novo, Mikey (Richard Wilson), separaram-se do gang de Arthur (Danny Huston), o irmão mais velho, cada vez mais incontrolável. Mas o britânico Capitão Stanley, bem decidido a civilizar a região, consegue apanhar Charlie e Mikey. Face à impossibilidade de capturar Arthur, guru místico retirado numas montanhas onde todos têm medo de aceder, Stanley faz uma proposta a Charlie: para obter um perdão pelos seus crimes e salvar o seu irmão do enforcamento, terá que encontrar e matar Arthur daqui a nove dias, antes do Natal. Numa Austrália devorada pela violência e pelo genocídio dos aborígenes, o destino dos irmãos Burns e do Capitão Stanley e da sua esposa Martha (Emily Watson) vai decidir-se no sangue e na morte.

Quem conhece e aprecia a obra musical de Nick Cave e dos seus Bad Seeds, sabe que o seu universo é feito de negrume e de niilismo, apoiado em fortes referências literárias indo do clássico religioso ao gótico mais pessimista. O argumento de “The Proposition” é portanto a extensão lógica do universo musical do seu autor, onde a contemplação e a exploração da ambiguidade do nosso “eu” interior se unem à violência mais abrupta e à tragédia mais redentora. Amigo há vinte anos do músico com essa voz cavernosa característica, John Hillcoat trouxe então toda a sua bagagem cinematográfica para dar corpo ao pesadíssimo argumento de Nick Cave e não há dúvidas que a sensibilidade de um e outro se mesclaram na perfeição, fazendo deste “The Proposition” um filme de uma potência emocional digna dos filmes mais viscerais e perturbadores do género.

Todos falam da referência incontornável do género que é Sam Peckinpah, e, mais uma vez aqui, é a sombra do génio realizador de “The Wild Bunch”, “Straw Dogs” e “Pat Garrett & Billy the Kid” que marca presença nesta obra. De facto, John Hillcoat soube impregnar no seu filme essa sensação, que deixa um nó no estômago, de fim de uma época e do começo de uma nova, tão característica dos filmes de Peckinpah. Como todos os Westerns dignos desse nome, a paisagem que envolve as personagens tem uma influência directa nas decisões das mesmas e nos acontecimentos que provocam. Terra de uma imensidade, à primeira vista infinita, esta Austrália em transformação é verdadeiramente inóspita e de uma surpreendente claustrofobia, como se fosse impossível escapar-lhe apesar da sua vastidão. Gigantesca prisão cujas grades estão constantemente prestes a fecharem-se na cara das personagens, a própria terra australiana parece rejeitar estes pobres animais humanos que a querem modificar, com este sol abrasador, estes relâmpagos ou estas nuvens de mosquitos que estão em todo o lado, tantos gritos de dor de uma terra disposta a tudo para se preservar.


Civilização versus barbaridade

Naturalmente que, neste ambiente apocalíptico, anunciador de uma civilização também preparada a ir até as últimas consequências para se instalar custe o que custar, as personagens sejam os reflexos de todos esses sentimentos, cristalizados no âmago de figuras em contínua luta entre as suas convicções profundas e aquilo que deve ser feito. Através de uma fotografia saturada de sol, mas no entanto altamente crepuscular e pesada, do francês Benoît Delhomme, Hillcoat põe perfeitamente em correspondência a natureza e o estado de espírito das suas personagens. O filme ganha assim um ritmo lento e contemplativo que deixa transparecer um falso clima de tranquilidade porque a primeira batalha joga-se no interior das personagens. No dilema de Charlie Burns (Guy Pearce notável de contenção e convicção) entre fazer o que está certo ou defender a sua família, na vontade ilusória do Capitão Stanley (Ray Winstone impressionante) em proteger a sua mulher mas também no seu dever de civilizar a região incompatível com a sua ideia moral de justiça, no desejo de vingança de Martha (Emily Watson tocante) e da população que confrontados com a realidade ganhará contornos menos absolutos, na figura de Arthur (Danny Huston possuído e perturbador) um psicopata culto e com valores familiares.

Esta primeira parte é então falsamente contida, como se o tiquetaque de uma bomba relógio acompanhasse a narração, deixando-nos a impressão de que o pior está para acontecer. Esse tiquetaque é traduzido pela música enigmática e sensorial de Nick Cave e Warren Ellis, com murmúrios e sons por vezes surpreendentemente duros. John Hillcoat faz também um uso inteligente da violência, mais uma vez como o fazia o grande Peckinpah. Essa violência física, que vai ganhando contornos psicológicos verdadeiramente insuportáveis, parasita progressivamente o ecrã, numa tradução directa do conflito interior das personagens posto em correspondência com o genocídio dos aborígenes que está a decorrer. É portanto num verdadeiro ambiente de carnificina que evoluem as personagens e “The Proposition” transforma-se então progressivamente num filme sobre a barbaridade humana. A cena do castigo de Mikey Burns em praça pública com 100 chicotadas é nesse sentido arrasadora. Lembrando por momentos "The Passion of the Christ" de Mel Gibson em termos gráficos e filmada em paralelo com a cena de um dos assassinos do bando de Arthur a cantar uma bela e apaziguadora canção, esta cena resume por si só o filme de John Hillcoat. De um lado a barbaridade, do outro a beleza, a complexidade e a ambiguidade do ser humano resumida em duas cenas paralelas que nos põem à frente do espelho e nos levam numa introspecção onde nem tudo o que vemos é bonito de se ver.


Após essa cena, onde uma terrível barreira foi ultrapassada (a população e o gang Burns serão assim tão diferentes?), Hillcoat leva todas as suas personagens numa descida aos infernos que não poupará ninguém. O uso da violência gráfica faz-se aqui mais reflexivo e somos confrontados com o que é capaz o até aqui misterioso poeta místico Arthur. “The Proposition” não podia portanto acabar de outra maneira do que num banho de sangue. A chegada do gang Burns à aldeia vai então mostrar à população que a velha Austrália ainda não abdicou dos seus direitos e que o preço a pagar para a civilização será bem mais elevado do que previsto. Mais uma vez, John Hillcoat escolhe concluir o seu filme mostrando as duas faces da mesma moeda, todo o contraste da nossa natureza onde o belo convive com o abjecto. De um lado, um jantar de Natal cheio de ritualismo entre Martha e Stanley e do outro, a violência a irromper sem avisar, mostrando que ninguém está imune aos instintos bestiais da natureza humana. Esse niilismo revestirá todavia as vestes da redenção com Charlie, símbolo de uma época no seu declínio, a pôr fim a essa mesma época e assim selar definitivamente o começo de uma nova Era.

Sinceramente, não estávamos à espera que “The Proposition” fosse uma experiência tão profunda e inesquecível. De uma brutalidade que incomodará muitas pessoas e de um negrume que nos confronta sem rodeios como os nossos demónios interiores, o filme de John Hillcoat é um autêntico golpe de mestre que, como todas as obras-primas, consegue abordar temas fundamentais de maneira inteligente e traduzi-los em termos visuais, de forma visceral e emocional. Digno representante do mestre Sam Peckinpah, “The Proposition” é sobretudo uma obra essencialmente australiana, reflexo de um universo que já admirávamos, o de Nick Cave, e de uma sensibilidade que desconhecíamos, a de John Hillcoat. Absolutamente imperdível!

04/06/2006

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